O CISCO NO OLHO

segunda-feira, 20 de junho de 2011 Diego Tales

Naquele tempo, Jesus contou uma parábola aos discípulos: “Pode um cego guiar outro cego? Não cairão os dois num buraco? Um discípulo não é maior do que o mestre; todo discípulo bem formado será como o mestre. Por que vês tu o cisco no olho do teu irmão, e não percebes a trave que há no teu próprio olho?
Como podes dizer a teu irmão: Irmão, deixa-me tirar o cisco do teu olho, quando tu não vês a trave no teu próprio olho? Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho, e então poderás enxergar bem para tirar o cisco do olho do teu irmão”. ( Lc 6,39-42)


O conhecimento abundante, disponibilizado pelos muitos meios e mecanismos existentes, hoje, no contexto da sociedade contemporânea mundial, bem como o acesso ao incalculável volume de informações têm configurado uma situação muito peculiar e perigosa. Parece ser incoerente e inexata uma asserção tal.


Ora, não é lógico, e é pouco racional pensar, que na medida em que se conhece mais e mais se obtém, com facilidade, informações em grande quantidade e necessárias se configurem riscos e prejuízos. Conhecimento e informações, de per si, têm a faculdade de evitar riscos, superar obstáculos e trazer benefícios.
Contudo, é verdade que o conhecimento ampliado e as informações numerosas estão conduzindo as pessoas numa dinâmica que não lhes tem permitido alcançar uma capacidade mais profunda, no dia a dia, no que diz respeito à autocrítica.


A autocrítica é um indispensável instrumento para que se conquiste, alimente e toda pessoa se mantenha dentro dos parâmetros e princípios éticos norteadores da vida comum do quotidiano e nas grandes questões. O fato é que o conhecimento e as informações estão especializando as inteligências nesta grande capacidade de avaliar e emitir juízos. Isso é bom? Obviamente que sim.


Qual é, então, o lado ruim da questão se é que ele possa existir? Este lado ruim existe sim. Sua existência é comprometedora para que valores éticos possam presidir mais a conduta, seja em nível individual quanto social e político, como condição sine qua non para içar a sociedade deste marasmo no qual ela está enterrada, abrindo-lhe um horizonte novo. Ora, assiste-se a um desenrolar de raciocínios e posicionamentos que apontam soluções para o problema da violência, por exemplo, quando se fala da diminuição da idade penal.
Este foco fica desconectado, por exemplo, da situação grave de impunidade que grassa na sociedade e a pouca eficácia no aparelhamento com mecanismos que permitam vencê-la. O calor das emoções, embora justas, pode obscurecer alguns pontos importantes, nesta luta para reorientar os fluxos desoladores que estão configurando o dia a dia da sociedade contemporânea.


Entre estes pontos não se pode, absolutamente, descartar a questão fundamental que é a capacidade de autocriticar-se. A especialização alcançada, mais ou menos por todos, tem exercitado as inteligências na direção de desferir juízos a respeito de situações várias, e de cada outro em particular.


É fácil julgar e condenar o outro. Como é forte o gosto para se cultivar maledicências, culpar os outros se eximindo de assumir responsabilidades. Em razão disso muita gente mente deslavadamente, acusa os outros, arma ciladas e, a todo custo, justifica sua própria situação e a mantém, ilusoriamente, convencida de se estar na direção certa. Já é uma subcultura perversa esta de justificar-se como bom na medida em que se desprestigia e encontra motivos, até mesmo falsos, para dizer que o outro não é e desmoralizá-lo.


Não é este um defeito peculiar da cultura contemporânea. Na verdade, esta é uma deficiência, de certo modo congênita, ao coração humano. É muito fácil criticar e emitir juízos a respeito dos outros e das situações em estando, enquanto juiz, de fora e distante. Por isso mesmo, as pessoas são extremamente exigentes quando se trata de reclamar os próprios direitos, de serem atendidas nos seus pleitos ou na satisfação de suas necessidades. O mesmo não se verifica, tendo como referência a si mesmo, quando diz respeito a respostas dadas aos outros, comprometimentos, a verdade dos fatos e uma generosidade solidária.


A maestria de Jesus tratou esta questão na condução dos seus discípulos. No Sermão da Montanha, Jesus, orientando a conduta dos seus seguidores, para dar-lhes um instrumento existencial eficaz na recuperação da ética e da condição de um agir moralmente correto, dialoga assim com os seus: “Por que observas o cisco no olho do teu irmão, e não reparas na trave que está no teu próprio olho? Ou, como podes dizer ao teu irmão: "Deixa-me tirar o cisco do teu olho", quando tu mesmo tens uma trave no teu? Hipócrita! Tira primeiro a trave que está no teu olho, e então enxergarás bem para tirar o cisco do olho do teu irmão” (Lc 6).


O juízo temerário é um risco, agravado pela falta de autocrítica. Aí está, incontestavelmente, uma raiz determinante desta falta de ética que vai permitindo tudo no que diz respeito a si mesmo, com a morbidez de julgar os outros, com uma perda lastimável e comprometedora da capacidade de, em primeiro lugar, fazer o próprio mea culpa. Este farisaísmo, condenado por Jesus, está medrando largamente nos corações, e assoreando a capacidade ética da solidariedade. O convite à conversão, neste tempo da quaresma, aponta nesta dinâmica, como capítulo primeiro. É a coragem de tirar primeiro o cisco do próprio olho. Este exercício abre caminho à solidariedade e ajusta a própria conduta.

Dom Walmor Oliveira de Azevedo

Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte

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